sombras no paraíso - 1986 (dir. aki kaurismaki)
22.04.2020

Sombras no paraíso é um filme finlandês lançado em 1986 pelo diretor Aki Kaurismaki. Cheguei nesse filme no início da noite enquanto chovia e eu havia preparado sopa. Precisava de um filme para assistir e me acompanhar em mais uma noite sozinha no meu quarto, de quarentena. Achei o filme no site https://filmestorrentshd.org/cult/ que tem vários filmes legais, conhecidos e não tão conhecidos também. Para quem tiver interesse e procura por filmes legais e sem o risco de baixar vírus pelo piratebay, fica a dica.

O filme trata de um homem que trabalha dirigindo um caminhão de lixo, Nikander, e uma mulher que é caixa no supermercado, Llona, os dois se conhecem quando Nikander vai até o supermercado comprar comida, após ter machucado o punho. Llona percebe o machucado e lhe dá um curativo. A partir daí os dois se encontram novamente quando Nikander passa pelo supermercado para recolher o lixo e vê Llona fumando nos fundos do local em sua hora de descanso e acaba convidando ela para sair. É perceptível desde o início do filme o quanto no meio do enredo há uma crítica forte ao trabalho, depois pesquisando sobre o filme vi que se tratava de uma trilogia do proletariado que o diretor havia feito, e Sombras no paraíso foi o primeiro filme dessa trilogia.

Nikander encontra refúgio indo em bares, fumando e escutando muita música, Llona encontra refúgio da mesma forma. O trabalho parece consumir todas as possibilidades de felicidade porque causa medo, apatia e uma série de sentimentos que desestabilizam os personagens. Nesse momento da narrativa eu já havia me identificado fortemente com essas relações de trabalho, lembrando de quando trabalhei na rede de fast foods Bob's, e tinha meia hora de descanso e ganhava o menor sanduíche da linha deles e o menor copo de refrigerante, ou quando trabalhei no maior jornal de porto velho que me fazia trabalhar até às 13h e ir correndo para a universidade e me fazia voltar às 17h, tendo que sair da universidade às 16h e perdendo o restante da aula para ficar no jornal até às 20h da noite, e isso tudo ganhando menos que um salário mínimo. Ou ainda quando trabalhei de telemarketing, de domingo a domingo, ganhando lanches de quatro reais e trinta centavos por dia. Deixo aqui um fragmento do que escrevi no meu diário nesse último trabalho em 2014-2015:

"preciso não levar as coisas tão a sério. o trabalho te interrompe uma série de coisas, te deixa em um estado de nervos e sofreguidão que praticamente nenhuma outra atividade exerce sobre ti e seus sentidos. na semana passada não temi estar ficando louca eu temi já estar louca. é essa mania de se largar em coisas inúteis. eu não vivo o meu trabalho, e é um alívio. ainda escreverei um tratado sobre o trabalho e os males causados nos indivíduos, males estes dos quais não tem volta. obviamente existem os trabalhos bons, porém o que digo são os trabalhos de massa, os que oferecem vagas em massa, como a oportunidade do primeiro emprego e atrai várias pessoas e acaba gerando decepção e frustração. espero que o trabalho não deixe tais marcas em mim, não seria justo. mas já me sinto marcada."

Tais marcas também estão nos personagens do filme, Llona por exemplo quando é despedida do trabalho não sabe pra onde ir e o que fazer, então pega sua mala, algum dinheiro que tem guardado e sai em busca de um lugar para ficar, até que chega em um hotel, o atendente diz o valor por dia, ela diz que quer o quarto e em seguida ele diz que não tem mais vagas. Fica implícito (as vezes explícito) o preconceito que ronda sobre Llona ser caixa de supermercado e sobre Nikander enquanto motorista do caminhão de lixo. Como se tais funções desmerecessem quem eles são realmente, enquanto indivíduos, como se eles não pudessem frequentar bons lugares, ouvir "boa" música, se divertir, etc.

No fim Llona e Nikander ficam juntos, após muitas reviravoltas e situações desafiadoras, muitas vezes deles mesmos ao encarar os próprios sentimentos. Os personagens parecem assumir assim como o capitalismo que são máquinas sem coração, mas o fim, dos dois juntos sinaliza uma quebra disso, percorrendo um caminho contrário, em direção ao lado sensível do humano que ainda resta neles.

Sombras no paraíso vale a pena ser assistido pela sua capacidade de crítica forte ao trabalho, pelas relações que ainda sobrevivem no meio disso e por uma vontade de que as coisas não sejam tão pisadas e duras. O trabalho consome mas há vida fora dele, há ainda música, um lugar legal para conhecer, pessoas legais e no fim é sempre isso o que mais importa, mesmo que tudo as vezes pareça (e é) pra baixo demais.


texto e arte por erlândia ribeiro @diarioconfessional
o medo devora a alma - 1974 (dir. rainer fassbinder)
assisti o medo devora a alma no dia 30 de março e escrevi esse texto abaixo sobre ele (na verdade gravei um áudio sobre o que achei do filme, porque a ideia era virar um podcast e não resenhas, mas como achei ruim acabei excluindo).


30.03.2020

Assisti o medo devora a alma e gostei muito do filme pela proposta bastante verdadeira, por não ser uma história mirabolante, mas sim se tratar de uma história real, palpável, que poderia acontecer em qualquer lugar e em qualquer tempo, e que é ainda muito presente na nossa sociedade atual, porque trata de preconceitos, xenofobia, racismo velado, entre outras questões.

O filme traz uma série de coisas novas bastante empolgantes, como a própria estética do filme, que é uma estética quase teatral (característica forte nos filmes do Fassbinder, como em Querelle, por exemplo), de quase não mudar as locações e dessas locações serem bastante simples, as usadas aqui são basicamente o bar, a casa de Emmi (personagem principal) o trabalho dela e só.

A primeira cena do filme traz a personagem principal Emmi, entrando num bar e todos param no momento em que ela entra, o bar está praticamente vazio, tem no máximo cinco pessoas e aparentemente todos se conhecem e ninguém conhece a senhora que acabou de entrar. E nesse sentido, o enredo do filme também se mostra bastante simples, é basicamente uma senhora que chega nesse bar, pede uma coca-cola, as pessoas que estão no bar tratam a senhora com desprezo e fazem comentários maldosos do tipo "ah chegou uma velha aqui no bar", até que um dos caras da roda se propõe a sentar com ela, e é um cara vinte anos mais novo e marroquino.

Aqui já entendemos que são dois pólos que vão protagonizar o filme, o primeiro com uma mulher que é excluída socialmente porque é pobre, e já é uma pessoa mais velha, e por outro lado, um homem que é excluído socialmente porque ele mora num país que não é o dele de origem, nesse caso a Alemanha, e é um homem negro no meio dessa sociedade branca e preconceituosa, com o nazismo ainda recente. Os dois personagens se apaixonam e acabam ficando juntos e tudo gira em torno do preconceito das pessoas com esse relacionamento dos dois, que acontece naturalmente, que não tem nenhum impedimento à vista, afinal eles se gostam e querem ficar juntos, mas acabam passando por muitas situações para concretizarem isso.

Os diálogos do filme são muito interessantes também e merecem destaque, em certa cena, Ali, o homem marroquino, que quase não fala por causa da barreira do idioma alemão que ele sabe muito pouco, explica para Emmi um ditado em árabe que significa "o medo devora a alma". E é interessante perceber o quanto o filme gira em torno dessa frase, já que eles passam o enredo todo com muito medo de se entregar a essa relação, de bater de frente contra os preconceitos sofridos para encarar esse amor que existe independente de raça, condição social, e etc.

Mas ao mesmo tempo é compreensível também que seja difícil ter coragem nessa sociedade que não respeita as escolhas individuais, que é cruel com quem escolhe outros caminhos, que só vê as aparências, que só se interessa pelo superficial. E talvez seja por isso que Ali se encanta por Emmi desde o início do filme, porque ele não consegue falar com nenhum alemão de igual pra igual, e ele encontra em Emmi alguém que o escuta e que se interessa minimamente pela sua vida. Em alguns momentos Emmi peca em também ser preconceituosa com Ali e o exibe como seu objeto de desejo, e é justamente a parte que ele se revolta contra ela, sai de casa e etc. É interessante essa ação de Ali, porque demonstra a autonomia dele perante essa situação, apesar de falar pouco, apesar de ter o jeito tímido, ele demonstra que não queria essa situação de ser um objeto dela e nem de ninguém, principalmente vindo dessa sociedade fascista. E essa revolta chega para Emmi como uma forma de que ela veja que está sendo tão preconceituosa quanto a sociedade que os julgava.

No fim os dois ficam juntos e o filme deixa sua mensagem, desde o respeito ao próximo, do respeito ao lugar de origem, do respeito ao amor livre, qualquer tipo de amor, até o respeito a subjetividade de cada pessoa.


texto e arte por erlândia ribeiro @diarioconfessional
sukiyaki de domingo - 2014 (autora bae su-ah)
02.05.2020

Sukiyaki de domingo, romance coreano, escrito pela autora Bae Su-ah, caiu nas minhas mãos na quarta-feira à tarde e já na quinta à noite eu havia terminado. O motivo: não sei direito. Mas sei que a narrativa trata de tantas questões urgentes e necessárias e de um modo tão cru e soco na cara do leitor que me envolveu por completa e a leitura passou como um filme muito bom que eu estivesse assistindo e que não queria que terminasse.

Resumindo bastante o livro narra a vida de pessoas que ficaram pobres, ou que foram pobres e alcançaram algum status. No entremeio da narrativa existem muitas críticas à respeito da condição social e como ainda há na sociedade uma cegueira intensa em busca dessa vida perfeita que o dinheiro pinta. A contracapa do livro traz exatamente esses aspectos "_ Me diz uma coisa, vocês não comem nada além de sopa de doen-jang, não é? O prédio inteiro sabe disso. E vocês nem usam máquina de lavar, usam? Dizem que é você quem lava tudo à mão. Nem água quente você pode usar. Do que é que adianta ganhar algum dinheiro e morar nesta porcaria de casa até morrer?" Aqui um dos personagens questiona sua própria namorada, pela vida precária que ela leva morando com sua mãe (que esconde dinheiro em uma panela velha no armário, e que tem o dinheiro como o bem maior de sua vida, nunca gastando, sempre guardando).

Cada personagem guarda em si uma complexidade enorme envolvendo a pobreza. Há um professor universitário que depois de um acontecimento bizarro decide largar sua esposa e filhos, para de trabalhar e vive sendo sustentado por uma mulher que faz programas. Há um outro professor universitário que também larga a docência, mora de favor na casa de desconhecidos e sobrevive do lixo que encontra em mercados, padarias e restaurantes. Há um acadêmico que já foi pobre e que agora pesquisa a pobreza dessas pessoas, marca entrevistas com elas e pergunta coisas como "nunca pensou em trabalhar?", "o que você acha de ser pobre?", "você é feliz vivendo nessas condições?" e etc, o sonho dele é escrever um livro chamado 'a triste sociedade miserável' compilando todas essas entrevistas e fazendo um tratado sobre a miséria. Há um casal que só tem tempo para o trabalho e que ao saber que uma amiga deles irá casar com um cara pobre começam a procurá-la para que ela desista dessa ideia.

Em muitos momentos me lembrei do filme parasita (direção de bong joon-ho), e de alguns outros que assisti ano passado como em chamas (direção lee chang-dong ) e
microhabitat (direção jeon go-woon). Tais filmes abordam um outro lado que não conhecemos da coreia do sul, em que a falta de dinheiro e perspectiva dos personagens são tão preocupantes quanto o esnobismo, preconceito e frieza que a riqueza traz. Percebemos esses dois pólos distintos entre as classes sociais e ao mesmo tempo a problemática que envolve tão profundamente esses meios. Há uma violência implícita e explícita nessas narrativas também, porque aquele que consegue alcançar o "status" parece pisar em quem não alcançou e o julga enquanto mais fraco, ou que não lutou o suficiente. Tal aspecto se assemelha muito ao que vivemos diariamente em nosso próprio país quando se fala em meritocracia, e a crítica que vemos em sukiyaki de domingo, assim como nos filmes citados, cai como uma luva para nossa própria realidade.

Além disso o livro tem traços bastante interessantes de narrativa moderna, contendo em sua estrutura capítulos rápidos e curtos, enredo não linear, o que pode assustar a princípio mas é um bônus do livro (pelo menos pra mim foi). Ao fim do livro a autora bae su-ah escreve que sua motivação era realmente escrever sobre a miséria (material e humana): "o âmbito da miséria está aumentando, tornando-se indefinido e diversificado, ao acompanhar o crescimento social. Ademais, vem se tornando algo abstrato, até. Foram esses aspectos da miséria que me atiçaram. Eu tinha também um desejo inconsciente de nunca terminar de escrever o livro, da mesma forma que a miséria não podia ser erradicada. No entanto, não pude. Lamento por esse fato também." Por último a autora conta que a obra foi recusada várias vezes, pelo conteúdo crítico, cru e violento de sua narrativa "se continuar assim, acho que vou ter um livro inteiro só com textos recusados", tal frase soa muito punk e bonita ao mesmo tempo, e sim, agora estou pilhada em escrever um livro forte e que seja recusado também.


texto e arte por erlândia ribeiro @diarioconfessional

eu, tu, ela, ele - 1974 (dir. chantal akerman)
20.05.2020

Existem filmes que precisamos assistir sozinhos. Luzes apagadas, algum conforto para as costas em almofadas macias, cobertas, e só a tela do computador ligado, e os pensamentos livres para as cenas que veremos. Assim foi quando assisti há uma semana atrás esse filme da chantal akerman, que desde então se tornou minha mais nova diretora de filmes preferida. Tinha ouvido falar desse filme no ano passado, em um congresso sobre a escrita do "eu", sobre a escrita confessional, e uma das professoras sabiamente trouxe um exemplo cinematográfico para essa escrita, destacando a primeira cena desse longa de chantal. O que a professora queria chamar atenção era para a estranheza da cena, em que como vemos na primeira foto acima, a personagem (a própria chantal), inicia de costas para a câmera, e a narradora - que é ela mesma - explica porque está nesse quarto há 21 dias.

O sentimento de estranheza em mim também se deu pela pandemia, acho que esse filme caiu como uma luva sobre como tenho me sentindo todos esses dias em casa. Eu que associei inúmeras vezes o espaço do meu quarto como um lugar muito sombrio e triste, já que é o lugar que na maioria das vezes eu não consigo sair, principalmente nos dias mais críticos pra minha ansiedade, me vi na mesma situação só que agora por necessidade. Lembro dos anos passados, em períodos muito tristes, em que eu passava cinco, sete dias sem sair de casa de forma alguma, lutando contra uma doença na minha cabeça da qual eu não tenho domínio. E depois claro, a minha melhora diante das sessões de psicoterapia, que me ajudavam no passado e ainda me ajudam a sair desse limbo atual que estamos passando.

Voltando ao filme, chantal passa a primeira meia hora do longa dentro desse quarto de hotel, fazendo coisas pequenas mas com reflexões muito pontuais. Ela muda de lugar os móveis do quarto, desmonta a cama e fica só com o colchão, abre um espaço no cômodo, deixando tudo mais "livre"; come açúcar desenfreadamente, escreve cartas, dorme, sonha, pensa muito, e ao fim da meia hora de filme, dos 21 dias, ela sai, como se estivesse cansada de esperar por quem nunca chega. No meio de uma estrada grande a personagem pede carona e embarca com um jovem caminhoneiro. Ela come e bebe o que ele paga, parece não ter dinheiro, a narradora em off continua suas reflexões acerca desse novo personagem que aparece. Já ele tem voz, com monólogos profundamente machistas. Enquanto dirige conta a ela sobre sua esposa e filhos, da maneira mais podre possível, como se fossem martírios que ele tivesse que carregar, conta das traições na estrada, de todas as mentiras. Essa é a última cena com o caminhoneiro, dando a entender que a personagem chegou na cidade em que queria. Ao fim, chantal chega no apartamento de uma mulher (que segundo a sinopse é sua amante), lá a mulher não parece gostar muito da visita, mas em seguida, quando a personagem diz que sente fome as coisas mudam, a mulher dá de comer para ela e daí seguimos assistindo dolorosamente alguns minutos em que ela come o sanduíche dado pela amante. Ao findar do ato de ternura, as duas parecem se entender e ficam juntas.

A reflexão do meio para o fim do filme fica por conta do espectador, talvez por isso o filme seja considerado difícil, e a maioria das cenas acontece na sua totalidade como aconteceria no campo da realidade (ver também o filme da mesma diretora chamado Jeanne Dielman de 1975, que tem três horas de duração e esse quesito se mostra ainda mais presente), sem trilha sonora, só o som ambiente rondando, e dando mais destaque ao toque cru e real de que as cenas precisam.

No meio do nada, da paralisia dos sentidos, parece restar alguma obstinação, alguma esperança para a personagem e talvez tenha sido exatamente isso o que me comoveu. A fome que ela sente é também uma fome pelo arrebatamento das coisas, pelo movimento, de que algo aconteça e a morbidez seja quebrada. O filme todo se mostra como um ruído poderoso no meio do silêncio e da estaticidade. Talvez seja isso o que precisamos nesse mesmo período em que vivemos, de pandemia e paralisia, que haja um movimento, um fôlego, uma vida.



texto e arte por erlândia ribeiro @diarioconfessional
uma canta, a outra não - 1977 (dir. agnes varda)
23.05.2020

Uma canta a outra não se tornou um dos meus filmes favoritos, por tudo o que nele se passa, desde o enredo até a construção das personagens, que são duas mulheres extremamente humanas, na medida em que erram e acertam em suas vidas, mas que apesar de tudo que passam sempre estão em busca da igualdade entre os gêneros, que o feminismo traz como corrente principal.

O enredo traz duas mulheres, uma de 17 anos e a outra de 22, a de 17 sonha em se tornar uma cantora de sucesso e sair da casa dos seus pais, a outra de 22 já é casada, tem dois filhos e sonha em retomar a autonomia de sua vida. No meio dessas questões a de 22 quer realizar um aborto e a de 17 acaba por ajudá-la, com o dinheiro de seus pais. O aborto é realizado, mas o pai da criança comete suicídio logo que ela retorna da clínica, e os pais da menina de 17 descobrem o destino do dinheiro e a menina sai de casa.

Diante dessa nova jornada, com inícios nada fáceis, as duas passam dez anos sem se ver mas continuam com uma forte conexão, pelas fortes questões que passaram juntas. É difícil explicar, mas a sensibilidade dessa primeira fase do filme é extremamente dolorosa e aponta inúmeras questões. Seja os pais da garota de 17 anos que são o típico casal em que a esposa cuida da casa e da filha e o pai só se preocupa com o trabalho e o que tem a ver com dinheiro. Seja o companheiro da mulher de 22 anos que é fotógrafo e não ganha muito dinheiro, mas quer continuar confiando em sua arte, mesmo que para isso sua esposa e filhos passem fome. O suicídio dele no fim da primeira fase do filme sinaliza uma pressão em que ele se coloca com o aborto do terceiro filho.

Dez anos depois somos levados as cenas dos ensaios da menina de 17 que agora mais velha é a fundadora de uma banda só com meninas, dos protestos comandados por ela e seu grupo; somos levados também a realidade atual da mulher de 22, que trabalha em um escritório e já tem os filhos adolescentes, e as reuniões que ela participa com um grupo de mulheres feministas. É interessante notar nessa segunda parte do filme o quanto a ajuda de outras mulheres na vida delas é importante, como uma rede de apoio que fosse se formando e fazendo parte da narrativa de vida das duas, para que fosse possível chegar a emancipação das duas enquanto mulheres.

Agnes Varda que é a diretora do filme, trata de milhares de questões extremamente atuais em nosso tempo e com um fervor talvez ainda mais potente do que o que vemos nos dias atuais. Aborto, independência, emancipação, enfim, tudo gira em torno da vida de mulheres comuns mas que conseguiram quebrar de alguma forma com o que se esperava delas. Mudando a rota de suas vidas e seguindo as direções que elas mesmas escolheram.

No fim do filme a reflexão que fica é que a vida dessas duas mulheres foi difícil mas que abriu caminhos para a vida de outras mulheres se tornarem um pouco mais simples, seguida por seus próprios desejos e vontades. Quando sobe os créditos finais aparece a frase de Simone de Beauvoir que não se nasce mulher mas torna-se. E essas mulheres cruzaram todas as etapas já cristalizadas ao seu gênero, para viver esse tornar-se mulher, e por fim conseguiram. Quero continuar tentando cruzar minhas etapas e chegar ao fim da vida com essa conquista também.




texto e arte por erlândia ribeiro @diarioconfessional